sexta-feira, 11 de julho de 2008

Auto piloto (Parte I)



O quarto cheio de fumaça, os cinzeiros amplamente qualificados, quantitativamente. Ao lado da cama, um livro entre aberto, gotas do que parecia remeter ao suor de uma noite amorosa embalada a conhaque, rum, champagne ou qualquer bebida. A marca dos cigarros revelada ao cinzeiro e o modo como ele queimou seguro no descanso do mesmo, partilhavam da falta de tempo, ou do excesso de exagero desprendido na noite. A parede com sua tintura bordô combinava exatamente com a textura do assoalho, a diferença era o marrom infiltrado no mesmo. No canto a descrição exaltada do pavor e da superioridade, um misto de medo, terror e abruptos toques de desprezo. Ela estava sentada em uma cadeira, dessas de balanço, de modo que o gestual compreendia toda a situação, até um cego enxergaria, as pernas sobre o acento envoltas por teus delicados braços, o olhar fixo aos lençóis soltos ao chão, cabelos de quem não dormira muito, a pele antes provavelmente vigorosa, agora num tom tão branco quanto poderia estar sobrancelhas rígidas, um tanto misteriosas, as mãos de unhas feitas sujas de sangue, gozadamente entrelaçadas, fomentaram-me os pensamentos necessários para beber mais um pouco.

Aqui já não se tratava apenas de mais um dos milhares de outros amores perdidos, ou tão pouco de apenas mais um entre tantos lunáticos que existem em qualquer periferia. Não, ela estava longe da parte suja da cidade, longe de ter alguém morto no quarto, longe de poder consumir aos pedaços a carne de todo aquele sangue, de fato, havia muito sangue. Não sei exatamente por que fui eu a ser chamado ao invés de um médico, ou mesmo a policia, seria mais interessante chamar um psiquiatra vizinho do que qualquer autoridade, pelo que consta, ao que tudo indicava era um fato meramente criminal, eu apenas tratava de insones, país e filhos rebeldes, não necessariamente nessa ordem. Mulheres desquitadas, e filhos absorvidos por vícios seria mais interessante pra mim do que todo aquele sangue, toda aquela estranheza de estar naquele cenário. Ninguém se importa em perturbar um vizinho no meio da noite? Essa era uma pergunta a ser feita para aquela senhora gorda que tocou minha campainha quando ouviu o grito. Realmente obesa, eu a trataria facilmente, ganharia um troco, e ela ainda iria me chamar de grande doutor. Claro. Obviamente inteligência não deve ser uma constante para ela, e a frustração e ansiedade a dominam tanto que é mais fácil estar acordada durante a madrugada em salas de chat do que assumir a culpa sobre o seu pecado, seja lá ele qual for. Amenidades pelo amor de deus era o que eu pediria a ele se o conhecesse, ou acreditasse na fé de gente gorda como ela. Bom o fato é que ao adentrar ao território sombrio daquele apartamento extremamente limpo, e o sexismo a tratar daquela vizinha que sim era bem interessante me fez ouvir a senhora "transtorno alimentar". Entrei e confesso não ouvi sequer uma palavra das mil ditas por aquela senhora, tamanho era meu sono, desdém e preguiça, enfim, cheguei-me mais perto da donzela e seus braços envoltos nas pernas, e que pernas eram aquelas deus.

Virei-me dizendo para aquela senhora que era a figura mais próxima da dona da casa que eu poderia contar:

- Será que eu posso usar o banheiro para lavar o rosto?

- Vá em frente meu filho, deus seja louvado por você estar aqui! - Absolutamente insana aquela mulher, o que teria Deus haver com ela me acordar no meio da noite por ouvir um único grito, afinal era só aquilo que ela me dizia se fossem abstraídos todos os gritos, onomatopéias, gemidos e "ai meu deus" pronunciados por aquela boca que seria capaz de me abocanhar vivo como uma tarântula.

Respondi educadamente claro. Lavei o rosto dei uma rápida olhada nas duas primeiras gavetas entre abertas da suíte, e retornei. Caminhei até o cinzeiro, procurando não encostar muito nos objetos ao chão, ou mesmo tocar nas cobertas, chegando bem próximo ao cinzeiro ela grunhiu, o que parecia não ser um bom sinal. Olhei ao lado do cinzeiro e o maço estava ali bem colocado simetricamente com o isqueiro, maço novo somente dois ou três cigarros disparados para os pulmões. Apanhei um, e sentei-me ao chão. Dei uma rápida olhada em suas vestes noturnas, na janela fechada e procurei algo que indicasse alguma coisa concreta.

- Seria melhor ligar para a policia não senhora? - Arqueando uma das minhas sobrancelhas.

- Sim eu já ia fazer isso, ainda bem que sou a proprietária do imóvel e tenho uma copia da chave, senão como saberíamos disso, meu deus! A coitadinha não consegue nem falar, tamanho deve ter sido o estresse sofrido. - Disse isso segurando suas saias, como se fosse expelir um feto do meio das pernas, ou algo pior, vá por mim meu caro, poucas coisas seriam mais bizarras.

- Que bom pra essa moça né?! Não me esqueça disso quando eu tiver que mudar de apartamento. Agora a senhora pode por caridade ligar para a policia, ou eu mesmo ligo?

E foi o prazo das palavras saltarem da minha boca e aquele que um dia fora um pequeno e brilhante rebento dizer não.

- Nada de policia, nada de policia, nada de policia, nada de policia, nada de policia... - e assim repetiu varias e varias vezes em baixo tom, com um cintilar invejável a muitos brasileiros.

A senhora gorda não sabia absolutamente o que fazer, ficou ali estática, completamente entorpecida, imaginei logo que aquela noite provavelmente demoraria a passar. Levantei-me dei um trago ao cigarro, e pedi para aquela senhora fazer o combinado fora dali, realmente a moça estava longe de conquistar alguma argumentação com aquela seqüência sonora. Saiu, e por mais idiota que pareça fechou a porta.



Sentei-me ao chão novamente inclinado a conversar com aquela moça, o ar de pavor, com um misto de satisfação e a incrível quantidade de sangue que havia no quarto sem nenhuma gota em seu corpo, intrigavam-me. Claro não era um detetive de policia e sequer queria ser, mas de fato era intrigante todo aquele alarde. A primeira pergunta que eu fiz afim de testar o nível emocional da dama fora simples e direta: - Quem é a senhora? - seguido de um comovente silencio, quase dava para ouvir os grilos e ratos caminhando e dançando pela cidade, de modo que prossegui:


- Senhora, por favor, diga-me seu nome? Existe alguém que eu deva ligar em que à senhora confie?


Ela se moveu, fitou-me com os olhos, abaixou a cabeça e sorriu. Passou as mãos pelos cabelos e acendera um cigarro. "Mas por que diabos ela vai fumar?" me perguntava a todo instante, quando comecei a pronunciar a minha próxima sentença ela enfim falou.


- Não importa quem sou eu, ou quem é você se não existe mais um futuro. - Seus olhos tão secos e a voz tão suave que não fazia qualquer sentido tamanho pessimismo. Nada seria muito real naquela frase, nem a situação que ela estava se tornara real.


- Mas senhora, como o futuro não existe? Não estamos aqui e a cada minuto que passa já se é passado? Logo já temos um futuro.


- Não, não temos nenhum futuro se não o pos morte. Aquele onde você se encontra com o criador e ele lhe fará uma pergunta simples, "Você é feliz?", e assim que você responder irá ao reino do inferno, pois ninguém na terra seria merecedor do céu.
Aquelas realmente me davam um alento, enfim aquela criatura falava, enfim dizia ao menos uma sandice, assim seria mais fácil chamá-la de louca futuramente. Mesmo assim, resolvi a responder a questão.


- Senhora acho que Deus ou o Diabo tem coisas mais importantes para pensar, se é que pensam do que e nós viciados e problemáticos na terra, e mesmo que estivessem tramando um jogo mortal para definir bons ou maus, qual seria a necessidade? Dado ao caráter humano, não teríamos nem chance de fazermos valer por um sentido. Só me diga. A senhora esta bem?


- Nem eu nem você estamos bem, e você sabe disso!!!! – Ela falou de forma tão convincente que quase imaginei que estava falando sério.


- Certo, mas não sei, sei que fui acordado ao meio da noite, vim pra cá e me deparei com a senhora, e seu quarto cheio de sangue. – Acendi mais um cigarro e confesso que não estava mais me divertindo ou me interessando por aquilo tudo.


- Não! Você nem sabe que está morto. Se prendeu tanto a esse envoltório que não percebe as coisas que acontecem em sua volta, é inevitável meu querida, você não tem mais futuro, agora somente perambular será sua vocação. Levantou-se de maneira a fazer-se valer como pessoa, nem parecia mais aquela criatura tão atordoada. Retornei-lhe com uma questão, dado ao nível de baboseiras que ela dizia.



- Ora se eu estou morto, o que faço aqui nesse apartamento, e como falo com você?


- Simples, eu já estou aqui a muitos anos, passei-me da mesma forma que você, toquei-me por dentro como as cordas exercem a força sobre um piano. Vê, eu sei mais que você. Como alguém com aquele nível de beleza poderia ser tão louca? Não fazia o menor sentido.



- Querida entenda que você esta sofrendo de um estresse pós-trauma, então é normal que seu nível de realidade esteja alterado. Vou até meu apartamento e pegarei uns comprimidos que farão você se sentir bem melhor.



- Se quer pegar algo porque não vai até o banheiro? –Disse-me ela de sobre salto.


- Não vejo motivos, mas se a senhora guarda medicamentos aqui, tudo bem.


Caminhei ate o banheiro abri a primeira gaveta que vi e lá estava, uma dúzia de medicamentos, quase fiz piada sobre serem iguais aos que eu tinha ao banheiro. Retornei e ela estava posta de pé, olhar fixo para fora da janela, nem sequer esperou-me falar algo e virou-se para mim dizendo:



- Que sangue é esse nas tuas roupas e mãos?



Rapidamente olhei, estava inundado de sangue.


- Não faço idéia, devo ter passado sem querer as mãos no lençol e me sujei. Droga! Vou ter que explicar para a policia isso.


- Não vai não. Esse sangue é seu, acredite.


Aquele sorriso dela estava quase me irritando, a situação desconfortável, a beleza de antes já estava sendo precedida por uma agonia terrível, fora a dor de cabeça, pensava “Por que diabos não pedi um café para aquela gorducha!”. E ela ainda prosseguiu:


- Você está em casa, e sabe a dor de cabeça é por culpa sua, boboca. – Seu riso era tão insuportável nesse momento que quase dei lhe as costas. – Você era tão bonito! Pena que não é mais, e agora por bem poderemos nos falar mais.


- Espero sinceramente que não senhora. A sua companhia me faria muito mal.
Caminhou ate a mim, cada passo dado me era uma sensação nova. Nem mesmo a quantidade de cocaína que eu usava era tão intensa quanto aquele trote da moça, minhas mãos tremiam, e minhas pernas incrivelmente bambas.


- Querido, olhe em volta, você sabe do que eu falo, sabe de cada passo, onde está cada coisa, e o mais importante, sabe da arma.


- Que arma? Que arma? – Já estava eu quase descontrolado.


- Só idiotas responde com outra pergunta, e você não é idiota. Me diga querido, onde guarda sua arma?


- Eu não tenho arma. – Disse lhe fitando a verdade.


- Claro que tem. Fica na cabeceira da cama todo dia, você teme que algum cliente volte para te matar. Não tente negar o obvio.
Nesse momento, e poucas vezes na vida, eu sentira esse medo, eu sentira o arrepio daquelas palavras. E ela continuou.


- Onde deixou sua arma? Você sabe onde está! Sabe que usou-a hoje, logo depois do seu ultimo copo. Você sabe onde ela está vamos diga! Assuma o fato homem!
Ela era tão imperativa que foi como cometer suicídio negar.


- Droga! Está na cama porra! Como você sabia disso? Eu não cheguei a usar ela hoje, vim aqui para te socorrer.


- Engraçado então eu te socorri? – A mesma risada idiota, ela dizia com tanta clareza que simplesmente seria difícil negar qualquer coisa.


- Ao que parece foi né?


Coloquei as mãos na cabeça, respirei fundo, mas o ar não chegava, a dor de cabeça estava demasiadamente forte.


- É eu acho que alguém fez uma besteira doutor. – caminhou ate mim, colocou as mãos sobre meus ombros, e como se fosse continuar a falar, calou-se.












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