domingo, 27 de setembro de 2009

Entrelace (Parte I)


Tudo redobra em estampidos fortes. Não passavam de três da tarde e o estomago rangia como uma degola de cabras. Outrora, outorgado do sabor de sangue, aqui estou eu. Sem erros, e acertos. Deveria ter tomado mais cuidado, menos ansiedade, mais acidez e talvez um tanto de inocência. Nem todo gato cai em pé. De fato cada um sabe onde apertam seus calos, suas mazelas entre tantos infortúnios propagados à Deus ou o Diabo. O suor frio da face, os carros parados, trânsito maldito, carro maldito, acidez clarividente. Solitariamente tal qual o verme come, abaixavam em embalagens retorcidas, mãos de modelos, corpos de prostitutas e pinturas de meretrizes, tal qual era o desprezo, tal qual era o prêmio à atuação. Existem dois momentos na vida, aquele em que se recorda dela, e o que se esquece dela.

Joelhos postos ao chão, olhar ávido de fogo, pulmões corroídos pelo monóxido, rostos suados contrapostos aos assustados. Os fracos sempre têm vez, de modo que burro é aquele que fica para ultima bala. Esse burro parece ter sido eu. Sinergia, anfetaminas, cafeína e nicotina me trazem talvez uma alternativa, o caminhão livre que roubarei à esquina, as pernas da madre, e tão composto é a densidade da pistola. Cano quente e fumegante. A lembrança de seu beijo no pescoço entre todos os antigos macetes não me permitia ao erro. Três corpos no chão sem cabeças, dois anteriores de tom completamente arroxeado e uma vaga lembrança do que fora meu dia. Dos olhares ardentes dela, mistos de euforia e medo, ao brilho efervescente instalado na minha cabeça dizendo certeiramente que sangue rolou, e rolaria mais.

Naquela tarde, pouca coisa indicaria o banho de sangue, lidava eu com mais uma rotina desalmada dos corpos que caminham sem alma, lidava eu com mais um dia de ignorância afirmativa, com paradoxos corporais, mentalidade incompatível e uma boa dose de lixo. Absoluto gosto de café na boca e uma ofuscada idéia do que é o sono de uma noite anterior bem destilada. A alforria do homem não está em quanto dinheiro ganha, mas no quão se esforça para adquiri-lo, de modo que, corpos nus normalmente são mais coesos que qualquer formulação teórica. O brilho intenso da luz arremetida à vidraçaria do boteco, onde porcos como eu caminham livres procurando alimento, destroçava a retina, de modo que nem mesmo a figura mais tênue de nossas trepadas caberia em minha visão mental. O V-8 me esperando, o colarinho cuidadosamente ajeitado, e aquelas palavras surgindo entre os timbres da minha cabeça. “Fale exatamente tudo o que achar que deve, mas não espere gratidão de algum possível rosto feminino”.

Ao sair do botequim, apenas mais uma velha conhecida imagem das ruas remetia à algo como Beirute pós guerra, ou Bagdad entre traques juvenis. Gente feia, mal acostumada com o termo humanidade. Entre o calor infernal propicio para o acasalamento de baratas. De tal modo que nem mesmo se aqueles corpos estivessem nus chamariam à atenção sexual de um maníaco. Talvez um carniceiro, não qualquer predador, e bastam alguns passos até a esquina pra comprovar o mau gosto destilado em suor, mau cheiro, e completa falta de classe mesmo com a imundice. Raras são as espécies aptas a compreender o que é a beleza nesses dias. Ao menos onde me ocupo existe isso por vezes.

Passos lentos, métrica pouca, e só, somente Graça nos dias de hoje valeriam mais do que uns trocados. Personificação da santa. Enfim, santas não dormem com mulheres, enchem o rabo de álcool, acabam por se marcar mais do que um escravo, e são tão sexys quanto o Demônio as fariam ser, conceberia assim se nesse plano estivesse, entretanto, só uma santa doaria prazer a corpos infectados pelo ódio, preguiça, avareza, luxuria ou gula. Mesmo que com uma quantidade absurda de dinheiro envolvida, somente uma santa dormiria com um gordo, não só apenas por dinheiro, mas por caridade. Graça era a minha mulher, meu tipo de mulher. Com o cheiro que os anjos devem ter, entre a boca que as meretrizes absolutamente ocupam, e o gosto que o diabo prova após um dia de trabalho.

Fazíamos todos parte do ramo de entretenimento, no qual, e somente no qual o grito é uma formula barata de prazer, o beijo do lixo no luxo, ou do luxo no lixo, nunca soube classificar bem, de maneira que pouco importa. As linhas circulares de seu corpo sempre me faziam perder a cabeça. De modo que nem mesmo sei como e porque a visão de suas cobras tatuadas me renderia mais que um malandro qualquer armado conseguiria. Uma visão nesse mar de almas sôfregas.
Acendi meu cigarro e caminhei ate o ponto onde aguardara meu veiculo, é absurdo como pessoas ainda pedem cigarros e tendem a te recriminar por mandá-las procurar um emprego. O mais absurdo é saber bem qual o tipo que lhe empunhasse tal pergunta. Sempre os mesmos de cabelos negros ou tingidos. Semi-sujos, com um vocabulário torpe, que nem a frangos metem medo. Aproxima-se lentamente, de modo que você percebe bem a sujeira entre seus dedos, a gordura na face, a pele queimada pelo sol e frio, e nem por isso são mendigos. Um mendigo teria mais classe. Os passos desses mortos vivos se traduzem em desespero, os olhos em aflição, arregalados como não mais o de uma fuinha esfomeada. Se a fome dói não é culpa minha. Desses tipos a única vantagem que se pode ter, são as drogas. Fácil acesso e baixa qualidade. Entre o que se pode chamar de alma nesse tipo, seria apenas a conjectura de um paspalho, enfim atrasado é que eu não iria chegar.

Abraçado pelos tentáculos do Diabo, seguiria eu à mais um aglomerado de sons, sirenes, estampidos e rojões, com sorte ao final do dia seria abençoado por cafetões e piranhas ate chegar ao clube, e por fim, trairia mais uma vez a verdade absoluta de padres ao ameaçar a vida de alguém com uma navalha. Enfim, são momentos como esses que fazem de você um sujeito de sorte.