terça-feira, 4 de novembro de 2008

Filtro Vermelho




São quase cindo da manha, e a iluminação pública é fraca como sempre. A cada esquina se vê um gato vadio, uma encruzilhada para adentrar teu espírito, é fato que isso aqui não anda muito salubre ultimamente. Acordar cedo é tão torturante quanto espetar em baixo das unhas um alfinete, e os cretinos ainda chamam isso de vida, de modo que cá estou eu com as chaves na mão, com meu Marverick roncando enquanto uma vizinha grita algo como uma evocação demoníaca de seu lar, “Que inferno!”, disse ela sem maiores pudores para o horário. Aquilo era de praxe, outro dia ameaçara seu marido com uma escopeta. Sabe-se Deus como ela arranjou aquilo, que tipo de doente mental dormiria com aquele bagulho a ponto de lhe dar dinheiro? Certas perguntas jamais serão respondidas meu caro. Adentro o carro com o conforto que fora proporcionado a mim. Os bancos de couro, a bola oito como minha válvula de vida, a ponto do cigarro já estar queimando, envolto tão em brasa quanto meu coração, de fato minha mulher me aguarda, e é notório que não irei atrasar.

A atração que sinto, é quase como a do câmbio a minhas mãos, tão delirante quanto às mãos dela no câmbio. Esquento meu motor, checo os ponteiros, a gasolina durará ate que a noite toda passe, minhas pistolas no porta luvas, a faca sob o banco, sempre me diriam palavras sobre alguma proteção. No porta malas, ainda existe espaço para corpos junto da escopeta, e das caixas de munição. Por um momento olho-me no espelho, e checo a boa aparência para minha garota, não se pode deixar uma pequena menina dessas escapar. Arranco enfim, e sigo para onde os bêbados não tem mais vez, Rolling Stones no rádio, “Stray Cat Blues” sempre me faz pensar em como é bom corromper menores. As ruas vazias nesse horário são como uma licença temporária para matar, correr, e burlar a lei, de fato nenhum guarda seria avistado nas próximas duas horas, e era ainda pior durante a madrugada anterior. Aqui apenas se vê mais do mesmo, o de sempre, a inundação de seres bizarros e cafetinas voltando para suas casas. A abertura de padarias, e entregadores de jornais ainda nem apontam seus focinhos fora de casa.

O caminho tortuoso, cheio de sete curvas, inclinado e indelicado. O odor dos arredores do centro nada agradável, de modo que não seria nenhum absurdo despertar irritado. O rio por onde sempre passo, fétido, cheio de más impressões, mas quem liga? Certamente não eu, conforto do meu carro, partindo para o nove entre o dez e o oito, preparado pra dar no pé daqui e seguir até onde houver o ultimo posto de gasolina solitário. O cigarro acesso, serve pra me manter mais perto do calor da boca dela, e isso realmente me traz boa sorte. Já passam das cinco da manhã, e penso na droga que seria atrasar-me a um encontro tão interessante, na verdade seria um pecado não iniciar meus dias com o balbuciar dos lábios dela, com a cerveja verde gelada aliviando o clima da garganta, matando minha saudade com o veludo da saudade dela. Certamente iria pro céu pelo clima, e para o inferno pelas companhias, entretanto, aonde eu for ela estará. Que seja com uma pistola sobre as coxas, ou um rifle encarando nossa danação.

Trinta minutos de carro e cá estou, aguardando por ela, embaixo de seu prédio. Ligo no seu telefone, e ouço mais uma vez aquela voz, e lembro de pensar “Demônio, quase dá pra sentir seus dentes roendo meus ossos”. Desço do carro, desligo o rádio, deixo o seu rock and roll penetrar afiado como um sabre, que corte meu pescoço então. Qualquer definição de ansiedade para ver novamente aquela pele branca, olhos negros e lábios vermelhos conseguiria ser totalmente abstrata, absolutamente inadequada, e obscura como caminha a pé sobre as águas. E pensar que um único parto gerou aquela mulher! Sim seria mais fácil imaginar uma equipe médica montando seu corpo com extrema exatidão cirúrgica, do que apenas um conjunto de junções genéticas. Absolutamente a hipnose filtraria meu sangue vermelho, e se acolheria no braço de minha amarração como a cocaína às novas gerações, tal qual o ópio à Coréia e a bebida aos nossos corações.