domingo, 11 de janeiro de 2009

Noites de Cabíria (Parte III)

Do estalar das pedrinhas de gelo, ao tic tac do seu isqueiro, não precisava de muito. Olhos negros, olhos negos o que seria de mim sem um par? Pedi imediatamente ao garçom duas taças de seu melhor champagne. Afinal despíamos ali, de todas as manhas perdidas em uma cama sozinha. Despedíamos absolutamente dos boleros de fossa, da emoção deixada em um cinzeiro cheio, entre garrafas vazias para mais um dia de lamentável trabalho. Como era de se esperar ela precisava aquecer a boca, e como proibir o que é inevitável? Como censurar o que de tão absoluto, pede-se a presença. Apanhei dois cigarros ao mesmo tempo. De modo que não me importava, se eram filtros brancos ou vermelhos. Apenas ali estava eu, meu maço e seus lábios. Busquei meu isqueiro, fósforos, ou qualquer pedra que lascada fornecesse fogo. De fato não tinha e êxitei, mas humildemente pedi seu isqueiro, afinal todos aqueles tic e tac’s soavam muito mais do que um puro convite.

- Por favor. Poderia me ceder seu isqueiro? Acabei deixando os meus fósforos em casa. – Claro que minha desculpa não iria ser levada a sério, contudo, pouco importava ali. Queria de fato fumar, os pulmões a todo vapor questionavam a integridade moral do meu corpo.

- O meu? Respondeu ela, de maneira que quando vi, coloquei-me a postular: - Sim os seus, de quem mais?

Ela levantou gentilmente, apanhou os cigarros da minha mão, caminhou elegantemente até o garçom, sorriu. Em uma ode à Afrodite, ou qualquer mulher divinamente fatal os tacos abriam alas à seu carisma. Dos dentes fixos na boca, e uma aparência quase milenar, não se poderia ao menos insinuar uma recusa. Pediu-lhe o isqueiro, que não mais do que poucas notas custariam em qualquer tabacaria respeitável. Acendeu os cigarros e deu-lhe as costas. O garçom num misto de surpresa e gagueira não ousou pedir de volta o artefato. Provavelmente olhará mais o formato da moça do que o que continha em suas mãos. A elegância precede o crime.

Retornou como foi. Elegantemente despida de moral, soterrando qualquer provável fio de misericórdia divina em minha alma, e não seria o que talvez fosse apenas um descuido que acumularia em mim a repulsa à aquela fonte inesgotável de saber feminino.

- Assim está melhor, querido? – Que voz suave. Entonação perfeita, cigarros acesos e gosto de desejo pela boca. Antes que eu pudesse falar mesmo um obrigado, retornou avassaladora entregando-me aquele isqueiro de poucos níqueis: - Pronto! Agora você não pode se queixar de não me fornecer um cigarro.

- Como assim? Esse isqueiro é daquele sujeito, não seria de bom tom sair com ele. Imaginou o escândalo que seria se ele pedir de volta? – Como de fato isso poderia me afetar eu não sabia, mas também não queria provar disso. Tinha uma redação inteira que ouvia de mim pontos sobre a conduta moral política do país. Não seria interessante deixar isso de lado. Contudo me sentia extremamente boçal com aquele sermão de avôs. Mais do que depressa segurou em minhas mãos, e o calor de sua pele certamente descongelaria qualquer padre orando em latim.

- Meu querido, eu não pedi pra ficar com ele. Mas o Garçom também não me pediu de volta. Brindemos, fumemos e caminhemos até meu automóvel. Esse hotel por mais delicado e acolhedor que seja não é capaz de nos fornecer muitos momentos inesquecíveis. Sabes guiar?

Que tipo de garota teria um carro, me pediria para guiar em sã consciência, por mais moderna que fosse? Até então apenas grandes artistas, que estávamos acostumados a ver nas matinês guiavam seus próprios carros, em uma realidade tão distante da nossa, que eu não via absolutamente nenhuma gota de razão naquelas palavras. Obviamente, também não êxitei em dizer sim. Seria mais agradável ir motorizado que caminhando em uma noite com pouca brisa. Aquele encontro realmente, não seria o mesmo de outros memoráveis com garotas de reputação duvidosa, mais tão acolhedora como mães em trabalho de parto. Entretanto, dada a modernidade da situação, os goles de champagne, a ansiedade profunda, e a total face do meu estar, poderia eu vislumbrar um futuro com aquela mulher. – Certo! Vamos ao carro. Há tempos não guio, mas não deve ser nada que nos traga preocupações.

Descemos do bar, caminhamos com a imponência que eu jamais havia provado antes. Passo a passo, de braços dados. Tão preciso quanto o horário de um trem britânico, atravessamos o saguão, até que o manobrista entregasse suas chaves. Ela apontando para mim como se fosse eu o príncipe com sorte, o inglês refinado que jamais partilhou de baixas rodas, da cachaça ardente na garganta seca, indicou quem de fato tomaria as mãos sobre o volante. Mais alguns passos, e lá estava. Completamente solto, entre quatro rodas, que o faziam flutuar. Os tons vermelhos e negros, entre a lataria e o estofado, as linhas circulares e o aro reluzente de suas calotas, a energia que pulsava dos faróis como se a vida fosse apenas uma convenção de Deus para você possuir um demônio sobre rodas, e a absoluta magnitude do contorno do chassi, ardentemente captaram minha memória Hollywood-ana. Sentar-me-ia ali, como o sultão, o magnata do petróleo, o abastado e novamente criaria certamente em minha memória, mais uma velha imitação de Clark Cable. De modo que mesmo tendo todos aqueles sinais de euforia nos pulsos, sentando ao confortabilíssimo acento, indaguei a procedência do veiculo. Como alguma mulher que não pertencesse a alta roda teria um carro como aquele, e por que se era de tão fina estirpe, mandaria uma carta convite, à um fracasso como eu, que longe passava das colunas sociais. A resposta veio crua. Em tom de deboche, sacramentando qualquer duvida sobre a existência de Deus.

- É roubado. Simplesmente era de alguém e agora é meu.
- Roubado? Como roubado? Você está brincando com minha cara não é?
- Não, jamais faria isso com você meu querido.

Impressionante a qualidade de paz de espírito que ela trazia, mesmo sob tais circunstancias. Mesmo que em absoluto furtasse a moral do ar de qualquer coroinha. Não causava sequer um olhar de repulsa, pelo contrario, tais assertivas apenas contribuíam para o espanto geral da nação. Se Getulio ainda fosse vivo, certamente compilaria ali uma lei marcial para todas mulheres do mundo, enquanto Prestes, bom Prestes não faria muito. De modo que coloquei em mim a responsabilidade de lhe enviar à normalidade e realidade das leis de direito.

- Escute querida! Eu não posso dirigir um automóvel furtado! Não é certo. É como casar-se com uma freira. Responda-me como eu poderia guiar para você assim?

- Ora, é simples! É como um carro comum, com a primeira, segunda, terceira e quarta marcha. Você se sairá bem.

Como um tiro certeiro no crânio de um animal. Senti, vi, e ouvi, e devo dizer que apenas por sentir, já me causava um grande alvoroço na espinha.

2 comentários:

Érica disse...

Nunca te deixaria guiar meu carro

heauiheiuaheuiaheuiaheuia

o mais interessante eh sempre imaginar de onde vem sua inspiraçao pra estas noites...

por algum motivo Jessica Rabbit nao me sai a cabeça...

(L)

virginiamaria disse...

estou adorando isso!

saudades!

=*