terça-feira, 11 de março de 2008

Enjoy

O bar estava lotado, as pessoas entrando em batalhões uniformizados, o negro bordô e o branco catalisavam e destilavam quaisquer expectativas que pairassem ao ar. As ideias captadas à quilômetros de distância, soltas como a poeira é absorvida pelos pulmões, os dois trabalhavam, e como trabalhavam, tudo tão meticulosamente calcado em calçados, calças e jaulas, cada pensamento absurdamente contido em quinze segundos. No balcão mais um semanário, um diário esportivo e a usual plataforma de cólicas. Ela chegou pediu um café, uma torrada e alguns grãos de açúcar, e inevitavelmente olhei cordialmente ela respondeu:

- Posso ficar por aqui? - (Seus olhos pintados de negro contrastavam com o cinza da cavidade nasal, as bordas dos lábios tão finas que uma esferográfica jamais poderia eu delinear.)

Respondi logo que a gagueira e a vista turva corresponderam: - Claro querida! Quem sou eu pra evitar que Deus exponha suas obras? - (Senti-me um imbecil, claro, sem sombra de duvidas à esse momento era quase um peão nas mãos de um ignorante ao xadrez)

Ela sorrira com um cinismo tão gracioso que somente os ordinários como eu entenderia as turras entre o amor e o absinto verde que jorrava agora de todas as lembranças da minha passada encarnação. As doses árticas que meu corpo transmitiam deviam apressar meu coma, sequer mais palavras pronunciei, como o aço fiquei ate a sua próxima sentença, infelizmente nunca veio. Demorei-me então, fixei o olhar à um pôster, "enjoy", "allways", essas palavras realmente faziam muito mais sentido com ela ao lado. As cores do vestido, as listras vermelhas e negras, as unhas simétricas, e o porte, ah o porte, jamais em tempo algum encontraria um porte daqueles, como diria, em uma corrida de cavalos aposte no vencedor.

Ela sorriu quando na fração de minutos eu expus minha exaltação, conforme o planejado por alguém que não me atrevo à dizer ela repetiu em alto e bom som.

- Adoro essa musica! Roberto Carlos sempre me excita com as curvas e as estradas tortuosas. (Agarrou-se ao meu cinzeiro, abruptamente e inconsequentemente).

- Aceita um cigarro? - fiz apenas o gesto, e provavelmente ele dizia mais que qualquer infortúnio que eu falasse.

- Qual cor? Classifico tudo por cores sabe, como por ex, você. - (Fez uma breve pausa.) - Me parece ser tão negro e cinza, tão elegantemente desconfortável nesse blazer azul da Prússia. Diga-me você tem nome?

Como poderia passar de lá pra cá, caminhar durante um bolero sem entrar em uma brutal melodia que tapasse meus olhos e irritasse minhas narinas? Eu não saberia responder apenas peguei dois cigarros e doei-lhe um.

- O cigarro é vermelho, querida. E vamos ficar sem nomes, sem passados, sem parceiros. Apenas nós aqui, você como qualquer bailarina pode ser, e eu como qualquer... (belo trago, e alguma pausa entre a articulação e a sombra da boca)... Bom eu como qualquer um, afinal pra que não é.

Como um gato intrigado com o peixe no aquário os olhos dela fixaram em minhas palavras calhordas, afinal o que além de um cigarro ela poderia querer o que além de um "oi" ela poderia esquecer. Qualquer nota à esse comportamento seria exagerada, imbecilmente, imoralmente, e talvez mais estranho que qualquer homem eu levantei, estendi-lhe a mão e a puxei. O Bolero corria tão solto quando nossos sorrisos amarrados, os pés fitando um o outro, a sala ou pavilhão, vazia, mas cheia de almas, o baile de 73 era realmente fantástico.

terça-feira, 4 de março de 2008

Bilheteiro do Diabo


Algum dia na vida ela terá de me explicar o que pensou ali! Suas memórias, a atmosfera do clima, o terror inerte dentro de uma pequena bolsa de mão, geralmente me causam esse pavor. Eram quatro da manhã, a madrugada com teu ar gelado, ela e eu apenas na praça, as árvores encobrindo qualquer vergonha que poderíamos ter furtos, roubos e os demais crimes capitais que praticamos todos os dias. A luxuria que brotava de tua imaginação era de embasbacar qualquer dona de casa, a cinta liga, a casaca de couro negro, tão negro quanto teus olhos e cabelos emolduravam minhas recordações das horas anteriores, foi quando ela me beijou.

Há algumas horas estávamos sóbrios, os picos, as doses, as altas risadas de adrenalina ainda não tinham penetrado nosso corpo, a fonte dos prazeres reprimidos por Bocage nem de longe tinha sido tocada. "Imperativo que se tome cuidado com pessoas de terceira idade!", foi o que ela me disse antes de sacar da automática cromada, e alvejar uma velha senhora na fila da bilheteria, três tiros bastaram e entre os instantes predestinatórios do som dos disparos e o alvoroço popular poucos gritos foram dados, nunca me senti tão vivo. "Manda-me rosas mortas toda manhã!", como dizia Jagger ela reproduzia entre os dentes o sorriso mais belo que eu poderia notar, o silencio já dizia a muito mais entre nós dois, os olhares mais impiedosos que os toques e amassos que poderíamos dar, e dávamos. Eu me imaginava contido, mas qualquer que fosse a sua reação teria obviamente a minha maturada posição, estava tão disposto quanto um coveiro ao partir a terra ao meio e como Moises fez ao ranger dos dentes divinos abrir meu próprio mar vermelho e escapar da tirania faraônica.

Engraçado como o tom vermelho vindo do sangue na pele branca da senhora vazia-me como se ela visse deus, era difícil acreditar que ela não tinha razão, "É imperativo", pensei. Seria um bobo besta ou qualquer tipo de mentalmente perturbado em dizer que não, permanecemos não mais do que alguns instantes nesse marasmo inerte, a visão do paraíso logo ali, quando a policia chegou. Dava para ver entre os olhos dela, o sortido desejo de pecar, ali, na frente do esquadrão, e todo o pavilhão se renderia cheio de graças à beleza de nossos corpos. Apoiamo-nos um ao outro, dedicamos mais uma nova canção e viajamos para nosso Éden, exatamente as quatro da manhã, com o vento frio, a cinta liga, e a luxuria que a proteção da chuva fina nos traria.